A Economia, conquanto Ciência, estuda os sistemas econômicos. Preocupa-se com o macro, com as tendências globais, com os grandes sistemas econômicos, sendo os principais o capitalismo e o socialismo. Este admite como poder de controle o Estado, gerando forte subordinação a este. O capitalismo tem como poder o dinheiro. Mesmo sob a pecha do liberalismo econômico, as pessoas são subordinadas ao dinheiro. Como o cristão deve viver nestas relações de subordinação, já que "não pode servir a dois senhores"? O socialismo é "mais cristão" que o capitalismo? Ambos são perniciosos? Jacques Ellul buscou respostas.
Jacques Ellul, pensador cristão falecido em 1994 |
Jacques Ellul (1912-1994) foi um sociólogo e teólogo cristão francês. Pensador profundo, merece ser estudado por todos que levam os problemas sociais a sério. Foi marxista, líder da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial e membro da Igreja Reformada da França. Entendeu que o "anarquismo cristão" é a única via que não contradiz os ensinamentos de Jesus. Preocupou-se com as ideologias e poderes que influenciam o homem, escrevendo sobre tecnologia, política, economia e teologia. Estou lendo um de seus mais de 40 livros, chamado O Homem e o dinheiro, editado pela Editora Palavra em 2008.
Eis um trecho do livro (pág.29-38, passim) :
Entre os três ou quatro grandes sistemas que pretendem trazer uma organização do dinheiro, somos tentados a escolher, e o que escolher portanto? Na verdade, nem a teologia, nem a Bíblia nos dão indicações que permitam decidir sobre a excelência de um sistema em relação ao outro. Não há mecanismo econômico que corresponda à fé cristã e, por isso se nós quisermos optar será necessário fazê-lo por razões naturais, sabendo que isto não exprimirá de modo algum nossa fé cristã. Fique claro que pode parecer decepcionante não se possuir um sistema que corresponda exatamente à fé e à doutrina dos cristãos. Mas atenção, o que é decepcionante não é o cristianismo, mas o sistema econômico. O cristianismo é infinitamente mais realista, e a revelação nos mostra nitidamente qual é a realidade exata do homem e do mundo para que se possa construir a partir dela um sistema. Nenhum dos grandes sistemas, capitalismo ou socialismo, nos diz uma palavra razoável quando nós tomamos consciência da realidade do dinheiro esclarecida pelas Escrituras.
Não podemos elaborar uma doutrina cristã do dinheiro em primeiro lugar porque não foi para isto que a Revelação nos foi entregue nas Escrituras, e menos ainda que Jesus nasceu, morreu e ressuscitou. Os textos bíblicos relacionados com o dinheiro são fragmentos da revelação global e seu conteúdo refere-se à obra de Deus manifestada em Jesus Cristo. Sem dúvida, o problema do dinheiro tem grande importância, mas não podemos chegar a uma construção sistemática sobre este ponto. Em segundo lugar, não há solução objetiva. Quando nós abrimos a Bíblia, nós não encontramos aí uma filosofia, uma política, uma metafísica, nem mesmo uma religião. Nós encontramos um engajamento num diálogo. O que a Bíblia me diz sobre o dinheiro inscreve-se nesse diálogo. É perfeitamente vão pretender deduzir dos textos bíblicos um sistema sobre o dinheiro aplicável ao mundo, porque os homens não reconheceriam uma verdade senão a partir de sua fé.
Nesta implacável sociedade onde o Estado é um poder de opressão (socialismo e comunismo) e o dinheiro um poder de possessão (capitalismo), Deus manifestado em Cristo convoca o cristão a viver segundo a vontade de Deus, ou seja, a realizar alguma coisa de extraordinário. Deus não propõe de modo algum ao conjunto dos homens fazer da sociedade um paraíso terrestre, mas somente a alguns homens particulares, chamados por uma necessidade muito singular de realizar neste ambiente, e não em outro a sua vontade. A perda desse sentimento gera uma vontade de santificar a sociedade, conduzindo a um desastre, a uma negação dos próprios fundamentos do cristianismo, pelo triunfo da lei sobre a graça. Enquanto a criação decaída persiste, o mundo continua mundo, o dinheiro, dinheiro.
No extremo oposto, há o fechamento dos cristãos com relação ao mundo. Se a tentativa do domínio religioso é ineficaz, o alheamento gera o domínio profano: o cristão não pode nada. O mundo que segue sua própria lei sem a presença da ação dos cristãos torna-se pior do que jamais teria sido. A ele falta a persistência da palavra de Deus anunciada e vivida; ele se desliga.
Entre essas posições, o cristão é chamado a viver, a se servir do dinheiro, como os outros, segundo as leis do dinheiro, criando uma certa ponte entre sua fé e seu comportamento social. Ele é levado a tornar esse comportamento bastante eficaz, sendo por exemplo um honesto comerciante, cidadão ativo e sério, habilmente virtuoso e moralmente pragmático. É um vitorioso.
Esse nível de relações pessoais cristãs saudáveis com o dinheiro, de per si, carrega dois perigos. O primeiro deriva da ideia de que o dinheiro é uma benção proveniente de Deus. Com toda razão, isso é correto. Mas os cristãos criaram uma igualdade perniciosa: dinheiro = benção. O dinheiro torna-se um valor espiritual em si. Se é verdade que toda benção carrega consigo um progresso material, não se pode dizer que toda riqueza acumulada, toda fortuna, seja fruto de uma benção. "Enriquecei-vos", diz um adepto dessa doutrina a jovens cristãos que o instaram a aconselhar sobre o que fazer. Toda atividade resulta nessa conquista do dinheiro, testemunho de uma "conquista espiritual" que por si só se agrega a outra conquista. O segundo perigo, mais sutil hoje em dia, envolve a noção de "gerência" (ou mordomia). O homem, particularmente o cristão, é um gestor que Deus escolheu para dirigir a terra. O homem rico, por consequência, é um gerente que deve, por um lado, fazer os outros participarem dessa possibilidade e,por outro, prestar contas a Deus de sua administração. O ponto de partida dessa visão não é de todo inexato, mas se está diante do mesmo erro: uma separação de alguns textos de seu contexto. Esquece-se que, se o homem é um bom gerente para Deus segundo textos do Gênesis, isto se refere à ordem da Criação. E costuma-se entender abusivamente aquilo que é do domínio da Criação até aquilo que vivemos agora, que é da ordem da Queda. Esquece-se facilmente que houve um evento muito grave entre essas duas ordens. Se é verdade que na fé o homem deve reconhecer que recebe seus bens de Deus e deve gerenciá-los para seu Criador, tal fato é rigorosamente inaplicável fora da fé. E ainda nesse caso há o risco de um certo triunfalismo, a convicção de que foram chamados por Deus por entre os homens para dirigir os negócios do mundo, e fazer os outros aproveitarem. Manifestadamente, Deus escolhe os "mais capazes" para esta gerência e os outros devem aproveitar essa administração sem participar dela ativamente. A ideia de gerência é útil para nos recordar que não somos proprietários de bens, e que nós teremos que prestar contas, mas ela se torna perniciosa na medida em que serve de justificativa para estabilizar aquilo que Deus quer submetido ao Espírito Santo.
Quer saber mais? Leia O homem e o dinheiro. Excelente leitura!
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